Monday, October 23, 2006

um dia na vida de um amigo de um cadáver 3º ensaio do 2º a circular


Eu e tu, um morto, naquele parque verde no meio da cidade. Levei-te a ver as nuvens. Ficámos os dois ali, a olhar os formatos das nuvens no meio daquele céu azul. Aquele parecia um chupa-chupa… se calhar disse isto porque estava com fome. É estranho, quando estamos com fome tudo parece irradiar cheiro, sabor ou aspecto de comida… Tal quando alguém morre e tudo nos faz lembrar o tempo que essa pessoa já não vai partilhar conosco e as vezes que já não vamos relembrar o que vivemos ou as trafulhices que aprontámos…
Não me apetece falar contigo sabes…não me apetece dizer as saudades que sinto, as palavras que não te disse, ou até que não me despedi! Não gosto de dizer adeus, prefiro o até logo! Prefiro ficar em silêncio, ao invés de inventar histórias que não vivemos ou palavras que não sinto… Já reparaste como o silêncio é complicado? Dizem que uma das formas de percebermos se realmente estamos à vontade com alguém é estar em silêncio sem que isso seja incómodo. Nada de conversas inventadas à pressão, nem a tentativa forçada de preencher o tempo com conversas sobre ele mesmo… Quando conhecemos alguém, é frequente aquela necessidade de ocupar todos os espaços em branco com qualquer coisa…
O silêncio incomoda, magoa…o silêncio permite-nos conversar conosco mesmo, ouvir todas estas vozes que moram cá dentro… é melhor ocupar o tempo com conversas inúteis do que sentir aquela dor do pensamento…
Estar em silêncio é também saber escutar o outro e a nossa vontade própria… mas e se o silêncio não for por vontade própria mas for imposto…tu morreste…tu estás em silêncio…eu tento estar em silêncio, mas ao confrontar-me com quem foi calado não consigo deixar de falar com medo que paire em mim o espectro da minha própria mortalidade… Será que os mortos ouvem… devem saber tantos segredos! O maior escondem vocês, resignam-se ao silêncio…são habitados por ele eternamente…
Temos o silêncio da vergonha (ao deixarmos qualquer palavra tomar forma temos medo que aumente o sentimento), o silêncio da vontade (de fugir, de ficar, de dizer…as palavras tornam-se bem mais pesadas que a ausência desta); o silêncio da ignorância (mais vale optar por parecermos discretos); o silêncio do medo (nas vezes em que pronunciar uma palavra significa assumirmos sem volta possível que aconteceu o que não queremos admitir); o silêncio do silêncio!
Não me apetece fingir que tenho saudades tuas, que conto os segundos que estou contigo, inventar o que sinto ou sobre o que aconteceu… Apenas quero ser sincera contigo e comigo mesma e deixar o silêncio instalar-se…um silêncio vivo e outro morto!
Estranho como o silêncio pode ser o outro lado da folha… se não digo o que sinto é porque não partilho, porque não sou sincera, porque não sei o que sinto… se digo o que penso é porque imponho sempre a minha vontade, porque não ouço… é isso…se não faço silêncio é porque não ouço, se faço silêncio é porque não digo…mas um invalida o outro???
Aquela nuvem parece algodão doce! Lá estou eu outra vez com a comida, devo estar mesmo cheia de fome!!!
Sabes, acho que chegou o momento de te deixar em casa, sim em casa, é mais simpático do que dizer cemitério, assim soa de uma forma mais aconchegante e não tão definitiva! Lá estou eu a tentar não dizer morte como se tal fizesse com que continuasses aqui! Tento levar-te mas és pesado…o que vale é que vais ficar num sítio aqui perto…assim também tenho menos hipóteses de magoar (caso sintas alguma coisa e apenas não o possas dizer-me de qualquer forma)…
Enterro-te…saio sem me despedir…sabes que prefiro o até logo….

4 comments:

Anonymous said...

que texto!!
facilmente o imagino convertido numa das cenas de animação produzidas por Tim Burton...

bonito e inquietante!!...

desculpa ter entrado sem pedir licença...

jinho

anaea

Roxanne W. said...

anaea..sabes que quero que te sintas sempre bem vinda ao meu cantinho tal como eu me sinto bem em tua casa enquanto bebemos cha e comemos biscoitos ;)vai aparecendo

Jorge Bicho said...

as meninas dão licença que as acompanhe? é que este cantinho está tão acolhedor, que me apetece ficar aqui convosco.

rednosedraindeer said...

Enterraste-me e nem me escreveste nada. Aquela ali parece um bulldog bébé.