Wednesday, October 25, 2006

um dia na vida de um cadáver - o meu cadáver - 2º Circular



O chão frio. Sinto cada centímetro do corpo pesado e agarrado a este chão frio! Há um formigueiro que me percorre e tem especial incidência nas pontas dos pés. A escuridão que me envolve e esta quietude provocada, fazem-me uma espécie de claustrofobia, não, não é bem isso, é mais desespero….Não me consigo mover, não vejo nada…só ouço…só sinto…só te sinto como se fosses uma parte de mim! Ali estou eu, jazida, morta, ou meio morta, numa espécie de limbo de indecisão! Agarras-me e arrastas-me para algum sítio…não sei bem onde, mas sentir-te ali comigo faz-me sentir menos só, menos definitiva… Sabes, o sempre assusta-me…o eternamente arrepia-me!
Páras de me transportar. Ouço os pregos do meu caixão! Um a um a espetar a madeira envernizada como se fossem farpas a atravessar-me a pele…O meu reflexo seria encolher-me, mas nem pestanejar consigo nesta rigidez mórbida em que me encontro… A terra a embater no caixão. Pázada a pázada. Não quero ficar aqui…não quero…desespero cada vez mais, revolto-me, entristeço-me, angustio-me, degladio-me comigo mesma! È cada vez mais sufocante este ar imaginadamente respirado…sim, imaginariamente pois os meus pulmões já não se mexem! Procuro ouvir-me no silêncio!
A tua voz ilumina-me de repente. É estranha a sensação de que vivo ainda em ti. É isso que me mantém ali na não morte, no desespero do nunca mais e na memória desfragmentada do sempre que é mais a eternidade! És como que um sopro ao ouvido que me tenciona acompanhar até uma quietude serena…Estou no mar dizes tu, num fundo escuro onde não existem peixes, algas, ou qualquer outra forma de vida. Só eu, deitada de costas na areia, com um punhado de areia em cada mão! Respiro mas não faço bolhinhas! Se me sinto confortável? Não! O peso do que deixei por terminar e do nunca mais são incomensuráveis! Lentamente, ao sabor da tua voz sinto-me a subir devagarinho, rompendo sinuosamente a água que me lambe o corpo como se fosse cetim! Em cada centímetro e em cada palmo volto ao que já fui! Ao baloiço da escola, ao bibe aos quadradinhos e aos inúmeros castigos! Voltei a ver o mundo com 3 ou quatro palmos… As fugas dos perús do quintal da avó, a primeira vez que vi uma cobra e das inúmeras viagens em busca da erva para os coelhos (gostava mais dos branquinhos!)! As escondidas com os primos, a ilha do Pessegueiro (foi lá que vi o meu primeiro pôr do sol sabias?!)! Foi no Alentejo também que aprendi que é uma noite cheia de estrelas que me iluminava quando dormia. A escola primária e aquele leite de chocolate que odiava! Os dias em que me esquecia de comprar a senha, o jogo do polícia e do ladrão e as aulas de carpintaria e de tecelagem no ATL! Os amigos no Ciclo e os inimigos…as vezes que era a última a ser escolhida na aula de Educação Física e aquele fato de treino verde àgua que me tornava na mais pirosa da turma! A morte do avô, os apelidos e as vezes que gozaram comigo…A ginástica de trampolim (porque é que desisti)?!! Revi os meus cães…e voltei a sentir o desgosto pela morte de cada um deles, o Pulgas que tomava conta de mim quando era bébé, o Piruças (que era o cão mais rápido e que caçava polvos), o Lau (o companheiro do avô), o Bolinhas (que parecia uma bola de futebol cada vez que comia), a Delta (a Peste que roeu os móveis lá de casa)…e como já não ia mais ver o Niro e ser literalmente agredida com aquelas patorras de cada vez que me via! O nascimento do meu mano e o seu primeiro dia de escola! O Secundário e a escolha de letras…. (queria ser jornalista porque que até gostava de escrever, e pensar em matemática lembrava-me as réguadas em frente à turma na primária)!
Continuei a levitar em toda aquela água e ser absorvida pelo que me dizias ao ouvido! “Morta”…disseste tu…”não sei se me ouves porque estás morta!!!!”As lágrimas caíram em catadupa cá para dentro, em nome da saudade do que fui, das escolhas que fiz, e principalmente pelo que não fui mas que gostava de ter sido… a quantidade de pessoas e de peles onde gostaria de ter vivido e as inúmeras vezes que tive vontade de vestir o outro e saber o que sentia!
Voltei novamente atrás… e revi as mil horas de conversas com as amigas e das parvoíces que dizia… sempre fui muito parva sabias??? Recordei os milhares de vezes que escrevi porque precisava, e até aqueles testamentos de análise de excertos de obras de autores portugueses! É incrível como 3 linhas equivaliam a 2 páginas de análise!!! Morri e ainda hoje não sei os tempos de conjugação verbais! As vezes que fiz teatro (Comecei com 1 ano, era o menino Jesus do presépio do infantário), recordei o quanto eram ridículas as festas dos santos populares e como me divertia no Carnaval! O meu primeiro beijo, como passava a correr pela travessa do campo da bola que não tinha iluminação e como apanhava chuva porque sempre perdia os guardas chuvas!!!! Os sonhos que tive. As vezes que amei sem resposta, ou, até aqueles em que a tive! As vezes que deixaria de percorrer aquele caminho de sempre… ou até as desculpas que inventava para mim mesma de forma a ficar mais uns segundos na cama!!! As vezes que fui feliz…aliás…as vezes que tive momentos felizes…tal como todas as vezes que aquele nervoso miudinho me invadia no avião antes de aterrar num país estrangeiro…ou mesmo as dezenas de vezes que me senti aos pedaços quando aterrava na Terceira!!!! Como amei Londres, Amesterdão, Bruxelas, sonhei em Brugges e me chateei em Madrid!
Sufoco-me a mim mesma! O choro parece atordoar-me e desespero por uma golfada de ar. Demasiadas memórias me entopem as veias onde o sangue já não é bombeado!
A tua voz abraça-me e como se fosse uma mão gigante e projecta-me para a superfície! Embato novamente na água e fico ali encharcada até aos ossos a boiar, com as mãos cheias com areia. Só consigo ver o céu azul! Não sei o que sinto e logo quando me dizes que te vais embora! Apenas sei que não queria que me deixasses! …
Escreves-me uma carta e querias que um sorriso morasse no meu rosto! Desculpa, não te vou conseguir fazer a vontade! Deixei cair a máscara lá no fundo…junto à areia! Deixei de sorrir ao invés de dizer que sofro! Os mortos já não fingem para si mesmos! Boa viagem, dizes-me. Eu fico ali à deriva!

1 comment:

Anonymous said...

malditos fatos de treino verde água...grrrr!

mais uma vez gostei...

anaea